Texto publicado na coluna Almanacre, do jornal Página 20, no domingo. A coluna é de responsabilidade do jornalista Élson Martins e o texto é de autoria do também jornalista Maurício de Lara Galvão. Para ler o texto direto na fonte clique aqui
A Intolerância Nossa de Cada Dia Por Maurício de Lara Galvão * A intolerância é, em síntese, a falta de respeito pelas diferenças ou crenças de terceiros. Implica sempre na desqualificação de um outro que não compartilha dos mesmos ideais ou da mesma fé e culmina, não raramente, no seu rebaixamento a um status inferior ao humano, justificando, quando há interesse, perseguições e massacres de toda espécie. Esta atitude mental desrespeitosa é sumariamente exercida pela humanidade desde a aurora dos tempos, tendo o ódio às diferenças atingido preferencialmente os mais fracos, as minorias e os excluídos socialmente. Cristo e seus apóstolos, enquanto apenas uma minoria, também foram perseguidos pelo dogmatismo dos sacerdotes judeus e autoridades pagãs. Nos primeiros séculos da cristandade, ser seguidor de Cristo era um passaporte para a tortura ou a morte. Cristãos chegaram a ser usados como combustíveis vivos para iluminar a cidade de Roma à noite, amarrados em postes públicos e incendiados, com o apoio da população e as bênçãos de Nero. Mais tarde, quando a situação se inverteu e o cristianismo tornou-se hegemônico, usaria dos mesmos métodos contra seus antigos perseguidores. Em nome da fé, cristãos zelosos também queimariam vivos - em madeira verde para que o suplício fosse prolongado - os primeiros protestantes (além das parteiras, que possuíam o conhecimento dos remédios e ervas naturais, dos ciganos, dos cátaros, dos albiginenses, etc.) e todo aquele sob suspeita de professar uma fé, conduta ou mesmo conhecimento diferenciado. A Igreja, evidentemente, lucrava muitíssimo com o seu monopólio sobre os corações e mentes. O saber popular afirma que basta dar poder a um homem para conhecermos suas verdadeiras inclinações, isso porque não faltarão oportunidades para que ele abuse desse poder. Da mesma forma, uma instituição, quando se torna majoritária, tende a estabelecer e estender suas próprias regras como se fossem parâmetros universais. Quando correntes religiosas neo-pentecostais, cada vez mais hegemônicas, condenam abertamente o culto afro-brasileiro, o espiritismo, o catolicismo, o Daime e demais formas de religiosidade cristãs ou não, facultando aos seus adeptos o estigma de pertencerem às legiões do diabo, estão na verdade abrindo um precedente perigoso para o futuro da sociedade e de seus próprios filhos, uma vez que estes não reconhecerão mais no vizinho o próximo que adota livremente sua fé, mas o inimigo perigoso que cultua o demônio e dele obtém seus favores. As carnificinas religiosas, sempre movidas por interesses econômicos, se utilizam da fé mal esclarecida de seus adeptos para que vizinho possa matar o vizinho sem piedade, culpa ou dúvida, uma vez que se julga a serviço de Deus. Para quem não vê perigo nestas disposições, vou reproduzir um diálogo recente com um colega que orgulhosamente se julga fundamentalista, porque considera sua fé mais zelosa e verdadeira que as demais: - Veja que absurdo, Maurício! Foi enviada uma missão de evangelização à Aldeia X e os índios não aceitaram Jesus! - Amigo, eles têm a sua fé e cultuam o divino à maneira deles. Não prejudicam ninguém com isso. Além do mais, se você mexer demais em suas tradições, acabará por destruir esse povo. - Não tem problema algum eles serem destruídos. O que importa é que suas almas cheguem ao céu. Um céu desses, eu não quero nem de graça. País que só é tolerante na propaganda de cerveja O Brasil é um país plural. Recebemos contribuições de africanos, europeus, asiáticos e índios, formando um amálgama de crenças e soluções para os desafios cotidianos que poucos países podem se gabar de possuir dentro de suas fronteiras. Ainda assim, as estruturas de poder econômico e político sempre estiveram nas mãos de elites mais preocupadas com a manutenção de seus privilégios do que com a construção de um país melhor. Isso gerou um aprofundamento das desigualdades, onde os direitos e a cidadania tornaram-se privilégio de poucos. Assim, a identidade e o orgulho de “ser brasileiro”, na prática só funciona para o pobre quando ele vê a representação de seu país ganhar eventos esportivos. O cotidiano o exclui da lembrança de pertencimento a um povo pacífico e criativo e ele passa então a desacreditar na possibilidade de sua inclusão no meio social e na eficácia dos aparatos políticos. Citando as palavras da antropóloga Alba Zaluar, coordenadora do Núcleo de Pesquisas das Violências da Uerj: “Se as poessoas não encontram nas esferas jurídicas e políticas as soluções para estes problemas, o medo e o sentido de iminente colapso da ordem e da vida social as fazem procurar na religião e na privacidade, mais próximas a elas, o refúgio familiar e restrito para essa ameaçadora bola de neve. Neste processo, elas podem encontrar uma nova prisão e um novo perigo de conflagração: o diabo identificado no próximo”. Foi neste vácuo de identidade e representação social que os cultos neo-pentecostais encontraram campo fértil para seu florescimento no Brasil, mais propriamente em meados da década de 80. Formulado nos EUA, o Pentecostalismo coloca os evangelhos e a des cida do Espírito Santo como foco central de sua doutrina, bem como qualifica as experiências de seus seguidores como similares às dos apóstolos, afastando-se do protestantismo histórico ou tradicional. Ao mesmo tempo em que resgata indivíduos em crise emocional ou financeira, facultando-lhes o sentimento positivo de dignidade e pertencimento a um grupo válido, absolve-os de transgressões passadas culpando uma entidade maligna cuja única função universal é enganar, matar e destruir: o diabo. Assim, o novo adepto, reformado, pode se desculpar perante o Divino e assumir uma nova identidade, porque a miséria de seus atos e transgressões passadas é atribuída às influências de entidades malignas que disputam com Deus os corações dos homens. “Aceitando Jesus” em seu coração, ele recupera a fé em si mesmo e no plano divino, recebe apoio grupal e passa a sentir-se em condições de se reformar, atuar e progredir socialmente onde antes encontrava sérias dificuldades. Até aí, perfeito. O problema começa – e apenas começa – quando o Diabo (que disputa com Deus os nossos corações) está na igreja vizinha. “Aceitar Jesus” passa então pela submissão do religioso à compreensão que determinada igreja ou pastor tem dos evangelhos. Daí por diante, inicia-se uma corrida bem mercantilista por fiéis e dízimos, onde a própria crença do outro passa a ser chamada de demoníaca. O demônio ganha imediatamente uma “cara”, ou seja, está intimamente ligado com os orixás e entidades do panteão afro-brasileiro, está também disfarçado na adoração à Virgem ou no uso de imagens de santos para a oração. Dentro desta lógica, o mal deixa de ser visualizado nas relações sociais perversas ou desiguais. Segundo Cecília Mariz, PHD em Sociologia da Religião pela Universidade de Boston (EUA), “O demônio seria para os pentecostais uma arma potente tanto contra a prática simultânea de religiões distintas quanto a adoção de valores e práticas de outros grupos religiosos. Neste caso, os pentecostais não demonizam apenas o oprimido socialmente (como seria o caso das religiões afros), mas também o socialmente mais bem sucedido (como no caso dos adeptos da Nova Era). Se as correntes fundamentalistas tendem a negligenciar e desqualificar a luta por direitos sociais e civis, por outro lado beneficíam a eterna guerra cósmica entre as forças do bem e do mal. Guerra que pode acabar no seu quintal, na sala de visitas ou mesmo na intimidade de seu quarto. Não faz muito tempo que milhares de mulheres muçulmanas Bósnias foram estupradas em série, dentro de suas casas, sob a justificativa nada piedosa de transformar as novas gerações, os filhos do estupro, em bons sérvios cristãos. O que ainda não entendemos muito bem O cristianismo é posterior ao Induísmo, ao Budismo, ao Zoroastrismo, ao Judaísmo, ao Taoísmo, e outras crenças ainda adotadas pela maior parte da humanidade. Crenças que ajudaram a edificar civilizações sofisticadas e aplicar na vida comum conceitos belos e necessários. O cristianismo é preferencialmente ocidental e sua mensagem é de tolerância, amor e respeito ao próximo. Apesar disso, em seu nome foram cometidos os maiores crimes e atrocidades contra a humanidade. Jesus chocou-se frontalmente com as concepções religiosas obtusas de seus compatriotas e líderes. Causava escândalo, por que o próximo, na concepção judaica da época, era tão somente o próprio judeu. Quem não professava nos mínimos detalhes a fé judaica, não era considerado próximo, podendo ser vilipendiado à vontade. Jesus, que também era judeu, costumava chamar os sacerdotes da época - orgulhosos por conhecerem na ponta da língua os textos sagrados - de sepulcros caiados, magníficos nas vestes e nas palavras, mas podres por dentro. Instigava seus apóstolos e fiéis a apreciarem as diferenças e perdoar aos inimigos. Assim, exaltou a fé e a atitude de um centurião romano, justificou o bom samaritano - que era um herege da época -, apoiou os esforços de um desconhecido que queria curar sem pertencer ao seleto grupo dos discípulos: “não o proíbam. Quem não está contra nós, está do nosso lado” (Lc 9, 49-50). Por fim, impediu a condenação de uma prostituta e prometeu o paraíso a um marginal arrependido, momentos antes de expirar. Deixou-nos também recomendações claras a respeito das atitudes preconceituosas, mesmo que em nome da fé: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós. E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”. (Mt 7:1-5) “Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Quem fala mal de um irmão, e julga a seu irmão, fala mal da lei, e julga a lei; e, se tu julgas a lei, já não és observador da lei, mas juiz. (Tiago 4:11-12). * Design gráfico, jornalista, técnico da Biblioteca da Floresta Marina Silva |
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